HISTÓRICO DA REDE PUXIRÃO

A emergência de identidades coletivas no Brasil nas últimas décadas tem revelado a existência de diversos grupos étnicos, organizados em movimentos sociais, que buscam garantir e reivindicar direitos, que sempre lhes foram negados pelo Estado. Desta forma, compreendem-se sem exaustão os motivos para o qual um país tão diverso em sua composição étnica, racial e cultural, a persistência de conflitos oriundos de distintas visões de mundo e modos de vida, que desencadeiam desde o período colonial, lutas pela afirmação das identidades coletivas, territorialidades especificas e reconhecimento dos direitos étnicos.



Na região Sul, especialmente no Paraná e Santa Catarina, a invisibilidade social é uma das principais características dos povos e comunidades tradicionais. Até pouco tempo atrás, a inexistência de estatísticas e censos oficiais fez com que estes grupos elaborassem seus levantamentos preliminares numa tentativa de afirmarem sua existência coletiva em meio a tensões, disputas e pressões que ameaçam seus diretos étnicos e coletivos garantidos pela Constituição Federal de 1988 e, diversos outros dispositivos jurídicos infraconstitucionais[1].



Destas demandas surge, na região Sul, a Rede Puxirão dos Povos e Comunidades Tradicionais, fruto do 1º Encontro Regional dos Povos e Comunidades Tradicionais, ocorrido no final do mês de Maio de 2008, em Guarapuava, interior do Paraná. Neste espaço de articulação, distintos grupos étnicos, a saber: xetá, guaranis, kaingangs, faxinalenses, quilombolas,benzedores e benzedeiras, pescadores artesanais, caiçaras, cipozeiras, religiosos de matriz africana e ilhéus; tais segmentos se articulam na esfera regional fornecendo condições políticas capazes de mudar as posições socialmente construídas neste campo de poder. Ademais, a conjuntura política nacional corrobora com essas mobilizações étnicas, abrindo possibilidades de vazão para as lutas sociais contingenciadas há pelo menos 3 séculos, somente no Sul do País.



quinta-feira, 18 de março de 2010

Além das coordenadas geográficas


por Ana Carolina Pimenta

Seu Vergino dos Santos não teve oportunidade de frequentar a escola, mas a vida ensinou bastante para esse quilombola que viveu até os 98 anos na comunidade de Nova Ipixuna, localizada no município de São Domingos do Capim, nordeste paraense. Chamado, respeitosamente, de “O Velho” por seus conterrâneos, era reconhecido como o depositário da memória daquele lugar, conhecia seus direitos e denunciava irregularidades territoriais e ambientais, indo de encontro a empresários e fazendeiros. “O Velho” foi uma das centenas de colaboradores do Projeto "Nova Cartografia Social da Amazônia" (PNCSA).A partir de técnicas de mapeamento social, o trabalho busca dar voz e visibilidade às diversas categorias sociais, como quilombolas, ribeirinhos, indígenas, carvoeiros, pescadores artesanais e seringueiros, potencializando a expressão de suas territorialidades específicas e sua consciência cultural. Criado em 2005 e coordenado nacionalmente pelo antropólogo Alfredo Wagner Berno de Almeida, professor da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), o Projeto Nova Cartografia é desenvolvido em todo o Brasil e dele participam, também, professores, estudantes de graduação e pós-graduação, em sua maioria, de universidades públicas, entre elas, a Universidade Federal do Pará (UFPA). De acordo com o coordenador, uma das características do PNCSA é seu caráter interdisciplinar, envolvendo pesquisadores das diversas áreas do conhecimento, como geógrafos, historiadores, biólogos, antropólogos e sociólogos.O Projeto tem como objetivo mapear mobilizações sociais, descrevendo-as e georreferenciando-as com base no que é considerado relevante pelas próprias comunidades estudadas. "Queremos uma Cartografia Social. Contar como surgiram essas comunidades, esse povo. Colocar no mapa localidades, rios, lagos, cemitérios e até mesmo casas que surgiram após conflitos de terra”, o desejo de D.Maria da Conceição Sarmento, quilombola marajoara, e de outros tantos, está materializado em mapas, croquis e nos mais de cem fascículos gerados ao longo de quatro anos de Projeto.
Localidades são nomeadas pela comunidade
Os fascículos são resultado de oficinas de mapeamento participativo, nas quais as fronteiras entre os sujeitos e os objetos de pesquisa se desfazem. Pesquisadores apoiam o processo em que gentes sociais embasados, principalmente, em conhecimentos cartográficos elementares e em seus próprios depoimentos delimitam perímetros e registram histórias de trabalho, de festas, de fetividades e de lutas.As coordenadas geográficas são marcadas pela própria comunidade por meio de GPS, as localidades são nomeadas e narradas em detalhes nas legendas. Alfredo Wagner esclarece que, pelo mapeamento articipativo, a Cartografia Social e a Cartografia Convencional são ciências complementares, que ão se colidem. “No mapeamento participativo, há uma inter-relação entre as ferramentas tecnológicas e os conhecimentos tradicionais”, explica. O resultado é uma autodemarcação uficientemente precisa.Assim, cada espaço é objeto de nomeação: todos os igarapés e todas as grotas – independente do amanho ou da condição – recebem uma identificação, um nome. Legendas, como "área com proibição os quilombolas terem acesso aos recursos hídricos", "parteira", "cerca para tapar igarapé", área de ritos nas águas (rios, igarapés e praias usadas em cultos)", sinalizam claramente a diferença entre a Cartografia Convencional e a Social.
Fascículos materializam conquistas do Projeto
Ribeirinhos das Ilhas de Belém; Mulheres quebradeiras na defesa do Babaçu contra as Carvoarias; rianças e Adolescentes Quilombolas e Ribeirinhos de Abaetetuba; Carvoeiros de Rondon do Pará; homossexuais na cidade de Belém; Quilombolas da Ilha do Marajó. Esses são alguns dos fascículos que o Projeto já lançou. A professora Rosa Acevedo Marin, do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos Naea/UFPA), destaca que os fascículos produzidos não são um fim, mas um meio para que povos radicionais oprimidos e outros excluídos sejam reconhecidos e possam lutar por seus direitos.A pesquisadora, que está à frente do PNCSA desde o momento de sua idealização, aponta várias situações em que o Projeto desdobrou-se em conquistas sociais. Titulação de terras para quilombolas, oficialização de línguas indígenas, proibição de pesca esportiva e comercial em rios ameaçados, embargos de obras irregulares são algumas delas.
Para Rosa Acevedo, a Cartografia Social difere-se da Cartografia Geográfica por revelar aspectos que transcendem aos dados técnicos e por revelar aquilo que os grandes grupos econômicos preferiam que permanecesse obscuro. A pesquisadora justifica que a autodemarcação promovida pelo mapeamento social expõe situações não reveladas nos discursos e mapas oficiais fazendo com que os fascículos sejam instrumentos de luta e denúncia. Um exemplo foi o trabalho realizado durante as oficinas nas ilhas ao sul de Belém, onde comunitários decidiram debater a contaminação da Baía do Guajará e os malefícios causados à saúde de crianças e adultos que consomem, diariamente, essa água."O fascículo é uma espécie de certidão de nascimento desses povos, por ser o primeiro documento sobre eles e a expressão do território e da identidade social elaborada por eles e para eles”, diz a geógrafa Maria Betanha Barbosa, coeditora do fascículo intitulado Povos do Aproaga - São Domingos do Capim e autora da dissertação sobre quilombolas do Vale do Rio Capim, orientada pela professora Rosa Acevedo.
Vida e luta dos quilombolas
Os artigos, livros e dissertações socializam o debate teórico produzido pelo Projeto. A valorização e a preservação do saber tradicional e da biodiversidade ou a regularização fundiária e terras tradicionalmente ocupadas são objetos das pesquisas desenvolvidas. Além desse desdobramento acadêmico, a Cartografia Social gera uma mudança de percepção que resulta em atitudes concretas. O fascículo Povos do Aproaga - São Domingos do Capim, por exemplo, foi entregue por integrantes da Associação Quilombolas Unidos do Rio Capim à Câmara Municipal e à Prefeitura de São Domingos do Capim, com a presença de vários quilombolas da região. Eles utilizaram os resultados do Projeto Nova Cartografia Social para reivindicar ao poder público a demarcação de suas terras. Rosa Acevedo explica que são os próprios movimentos que solicitam o trabalho do PNCSA. Cerca de 1.800 agentes sociais já participaram das oficinas do Projeto em todo o Brasil, comprovando que a iniciativa é bem sucedida. A pesquisadora afirma que os resultados obtidos encorajam outros grupos a lutarem por seu reconhecimento. Dessa forma, a Cartografia Social vai se legitimando como um meio encontrado por comunidades para fortalecer, ainda mais, as suas lutas.
* Matéria da Edção de Março do Jornal Beira Rio da Universidade Federal do Pará

Um comentário:

  1. Olá
    Estou desenvolvendo uma pesquisa entre as comunidades tradicionais do Amazonas. E para isso estou a procura de um banco de dados com as coordenadas geográficas de todas as comunidades tradicionais do Amazonas. Alguém já fez este tipo de levantamento alguma vez?
    Obrigado, Márcio Rempel (pesquisador da Faculdade Fidélis)

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